quarta-feira, 7 de maio de 2014

DOMINGO NO CORPO


Dei por mim naquela gare. Domingo quase extinto. Abrigado sob a pala da estação rodoviária. Um pouco mais acima, de pernas magras e calças largas a rapariga subia e descia a rampa, praguejando, braços cruzados sobre o casaco caqui, ensopado, os braços molhados e frios. Um cigarro, sobe mais um pouco e senta-se na sala de espera, sob a luz intermitente do néon. Deixa cair os sacos de plástico no banco, com estrondo. Retira o telefone móvel do bolso, olha-o fixamente, puxa da navalha e com a lâmina desliza sobre o visor, agora que a luz se fixou, consigo ver-lhe melhor as maçãs do rosto salientes, ossudas, os olhos fundos. Volta a praguejar, agita-se, dirige-se até uma máquina azul e introduz uma moeda na ranhura, bebe o café quente, cambaleia, pragueja, desferindo pontapés na estrutura dos bancos corridos, dobrando a biqueira dos sapatos. As calças parecem demasiado largas, dançam-lhe por cima das pernas, uma dança estranha, quase lúgubre. Acima do rosto anguloso, sobe a tecelagem do cabelo alaranjado, rematando numa bola quase perfeita, ajeita-o, crava-lhe um gancho, depois outro. É tarde e a muralha de água persiste lá fora, não permite que as feras saiam e invadam a noite. Na parede alta da gare, quase nua, um relógio marca zero e vinte. Na sala defronte dormem uns dez autocarros, a avaliar pelos rodados deitados no chão. Estendo um casaco no pavimento, junto do saco verde e deito-me, com o abdómen virado para o lancil, para proteger as vísceras dos animais mais vorazes. A rapariga, essa, acaba de sair deste texto.

 
20-04-2014
Paulo da Ponte

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

LADAINHA BREVE SOBRE FUNDO MUSICAL DE "Host of Seraphim"



Abandona o emprego, o bloco firme a que chamas casa, os horários certos, a cama feita de lavado, a servidão que te impõem ao peito, como insígnia metálica, em troca de uma escassa côdea. Desdenha dos que elevam a voz nos palanques inatingíveis, que te olham de cima para baixo como erva daninha, sobretudo desconfia das assembleias e dos votantes, daqueles cuja limpeza exterior encobre o vil esterco. Enche os bolsos de papéis para os inquiridores, para que se deleitem em longa quermesse, atira com pressão de ar à curva ascendente dos mercados, rebenta os lucros como balões, esvazia as contas dos ávaros e magnatas e enche com o seu produto grossas morcelas. Cava o teu fundo covil, rega as regras à entrada, pode ser que cresçam mais justas, do meio da verdura e depois com uma faca afiada, zás, corta o falo pela raiz, uma e outra vez, ceifa a cabeça aos energúmenos, produz suficiente lama para cobrir os castos, urde ataduras húmidas para ungir os bácoros, grunhe se puderes e chama o grande irmão para te acompanhar, para fazerem um coro de idiotas, os dois, olha que estão bem um para o outro: engraçados, que da fome não fazem a mais pequena ideia, a não ser a que retiveram de um episódio longínquo do National Geographic.

Paulo da Ponte
Julho 2013

sábado, 3 de agosto de 2013

TRÊS MULHERES E UM HOMEM (novela ou conto em pequenos fragmentos)

[Fragmento 1]
De errância se trata, este ofício de pousar a caneta sobre o papel e vaguear, como se a liberdade não pudesse cessar, um dia, por detrás da servidão.
Neste fragmento inicial era suposto desenhar o perfil psicológico dos quatro intervenientes na pequena novela, ideia estapafúrdia, logo abandonada, a que se juntaram os restantes fragmentos, todos devidamente desorganizados, em forma aleatória, a que os números darão a errónea sensação de ordem, vasos comunicantes de escrita, para que, ultrapassando as fronteiras convencionais, se aproximem da complexidade real dos homens e das mulheres de hoje, de sempre.

[Fragmento 2]
1.º episódio lunar
O calor era intenso, o sul latejava nas têmporas nocturnas, as gaivotas sobrevoavam as casas empoleiradas nas árvores. A cidade enchia-se, no estio, de vestidos debruados a tucanos e palmeiras.
Os veículos bordejavam os passeios, deambulavam com os motores acesos, procurando na via o mínimo lugar, era uma espera, quase um átrio de sono ao nível da rua, o mar continuava banhando os bancos de areia, um pouco mais longe dali; a cidade refugiara-se no oco da onda lunar.
2.º episódio lunar
Era uma cidade do sul que escutava ainda a voz longínqua de mouras encantadas, cativas nos poços da memória.
Era uma casa de ramos altos onde as mulheres se encontravam, lunares, absolutas. O homem abria as veias de Baco e o néctar escorria-lhe dentro das feridas, havia o pão inicial sobre a mesa, uma liturgia de sangue e pão e uma das mulheres desnudava as coxas, o trigo germinava ao nível do chão envolvendo o tronco forte das vozes; era uma noite luminosa, os risos atravessavam o ar e pousavam sobre a mesa de madeira, nos panos de linho.
Depois, uma das mulheres iniciou o rito sacrificial, vertendo o néctar sobre o vestido branco, mascando pétalas, erguia o corpo numa dança pélvica, este jardim túmido penetrava a boca dos convidados, o rumor líquido saciava as gargantas sequiosas. As línguas indicavam os poços em torno da casa arbórea. Formava-se uma roda e juntavam-se outros homens e mulheres, rodando sempre em círculos sucessivos, apertando as mãos e movendo os corpos ao sabor dos dias e das noites em que duravam os ritos.
3.º episódio lunar
Agora, o homem rompia com os dedos a erva, e longe dele as mulheres adensavam o mistério dos seus cabelos nos reflexos da noite. Havia um mar a separá-los, havia sempre homem, paredes de água, mulher, um oceano de lonjuras, de encontros e desencontros, de palavras trocadas, guardadas dentro de um cofre.

[Fragmento 3]
A tenda assente sobre as ervas, as folhas rente ao peito, arrastadas pelas asas dos carriços, é meia-noite, fixo-me no buraco alvo da lua.
As ramificações radiculares desenhadas à porta convidam a palavra: terra.
As estacas sustentam as espias, fundem-se ante a fragilidade dos braços.
Agosto ata este homem às mulheres que lhe aconteceram, mas não é um nó, trata-se de um jogo leve, quase um poema, aquilo que os une.
É isto a arte? Este acontecimento rude de corpos trigueiros, em que não existe moldura a limitar os movimentos, a cercear os seus gestos largos?

[Fragmento 4]
A disciplina astral obrigava o homem a ficar acordado toda a noite, mãos colocadas sobre o peito, enquanto grandes aves grasnavam sobre a sua cabeça. O grasnido aflito desses pássaros reverberava em todo o pavimento, ecoava na arcaria do tórax.
Chovia agora, uma água vinda do centro da noite para o relembrar da vigília, um som crepitante, de floresta seca e do fogo que se formava, por vezes, por excesso de ramos, devido ao aviso tardio dos pássaros vigilantes.
 Enquanto isso as três mulheres enrolavam-se nos seus lençóis de linho, com seus companheiros, e ao primeiro raio de luz sentavam-se sobre os seus ventres ígneos, enchendo-se de flores nos cabelos.
Despontava das bocas das mulheres a inocência dos filhos, tapados agora com grossos panos. Quando se levantavam, punham a correr a água dos riachos e lavavam os olhos e pele, em seguida envolvendo o corpo com gaze, tapando as feridas mais profundas, acreditando que os véus que as cobriam tudo podiam curar. Assim foi, durante longos anos.  

[Fragmento 5]
Um dia o homem tocou o elemento fogo com as próprias mãos, e numa das mulheres, a mais indefesa, formou-se uma língua de fogo que lhe devorou o interior. Ficou-lhe para sempre aquela labareda interna que lhe aflorava à boca em momentos de profunda solidão, como amarra desatada.
O homem sofreu um momentâneo sopro ígneo e o vento não lhe coube nas mãos, nesse dia aziago. A arte de dominar o fogo era para eles (homem e mulheres) uma constante aprendizagem, um livro de palavra nenhuma.

[Fragmento 6]
O homem amarrava as suas coisas, abandonava a casa alta das três mulheres; sem fazer barulho deixando sobre a mesa um pequeno bilhete de gomos de oiro e deslizou, por fim, em silêncio.
Na cama, as três mulheres, aconchegadas no torvelinho de cabelos, davam as mãos, enquanto um pequeno sol nascia-lhes no lóbulo das orelhas.
Lá fora, os sons começavam, mais uma vez, eram os filhos e esposos que chegavam, invisíveis, subindo as escadas aos tropeções, dando pequenas gargalhadas de ternura.

[Fragmento 7]
Uma das mulheres, vinda da alta montanha, trazia suspensos nas orelhas dois medronhos rubros, como lábios.
Descera ao longo da abrupta vertente, tacteando os troncos da floresta, ferindo os dedos nas cascas e ramos pontiagudos.
Mais abaixo, na base da vertente, onde o chão perdia a vertigem, iniciava um fogo, fervia os medronhos e derramava o néctar sobre as feridas dos dedos. Os bichos eram chamados de dentro das tocas e dançavam em volta da mulher, uma dança panejada de vento.
As fóias giravam no ar e a doce mulher foi sendo empurrada para o litoral, à medida que os rios serranos engrossavam e as jangadas deslizavam em leitos cada vez mais largos até ao mar.

[Epílogo]
Hoje, passados vários anos, na foz continua um rio, que se alargou de braços abertos, e ficou sempre um perfume de três mulheres nesse leito alargado, que se confunde com os laranjais, e a que os homens, agora mais numerosos, chamam de arade, o rio de um homem é sempre um vaso de água pequeno de mais.

(versão revista e ampliada)
Julho de 2013

quarta-feira, 1 de maio de 2013

NOTA DE ABERTURA

Nada faria prever a falência do sistema capitalista de uma forma tão abrupta e brutal. Primeiro, as caixas de multibanco foram sendo removidas e os funcionários bancários utilizados como pedreiros para tapar os buracos abertos nas paredes bancárias. Em seguida houve necessidade de colocar tapumes nas portas e montras envidraçadas, sendo os caixas reconvertidos em carpinteiros. O.... Pisse assumia a coordenação das equipas de rua, que recolhiam as notas avulso expelidas pelo colapso de balcões e caixas fortes. De camaroeiros em punho tentava-se evitar o espalhamento de notas indevidamente e controlar o endividamento incontrolável. Tudo era confinado, acondicionado por um espartilho, antes da implosão de todo o sistema. Octave encarregou-se ele próprio de distribuir sacos cadáver para recolha e acondicionamento de todos aqueles que, não consigam ficar fora do raio de influência do impacto financeiro na altura da detoonação. A toxicidade de alguns produtos levaria à asfixia daqueles que, duma forma ou de outra, trabalhassem junto de spreads e taxas de juro fictícias. O. Pisse ficaria no centro de toda a turbulência financeira, movimentando carteiras de títulos e atando as operações bolsistas de última hora, desligando os painéis electrónicos, desfazendo qualquer margem negocial, limpando qualquer vestígio de dinheiro com lixívia.

in "Octave Pisse, o último corredor de fundo", Paulo da Ponte

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

AXE

"AXE (terror in fact)" está em construção e será o meu próximo livro. Lanço aqui o desafio a todos os leitores para uma participação nessa edição com a "Nota introdutória" ou "Nota de abertura", que deve ser enviada através de mensagem para o endereço de correio electrónico: pauljcorreia.arq@gmail.com. Aos três melhores textos será oferecido um exemplar do livro.

Nota: Para apoio à participação consideram-se todos os textos aqui publicados com referência ao "homem do machado", até 15 de Fevereiro de 2013.

Paulo da Ponte

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

(...)

estou aqui, só, deixado ao frio na repartição,
lá fora ouço vozes, sinto a robustez do teu peito
de maçãs, quando aqui fui abandonado,
já não me lembro bem, era uma sexta-feira,
cães ladravam na baía, lia Rilke e fumava
desalmadamente colunas de cetim,
o fumo, em rolos, ascendia muito para além
do abandono que sinto aqui, preso,
aos teus dedos amarelos de amor.

3-01-2013

Batráquios

Recebemos o novo ano em contacto com a água. Assim deve ser, como no baptismo, a boca encostada à película aquosa que aflora das rochas.
Somos grandes batráquios, o sol invade-nos, distamos da falésia o tempo suficiente para nos protegermos da onda ou da glauca maré. Lançando os olhos a esse princípio de oceano é o novo ano que se estende da ponta do areal até ao fino traço sobreposto às águas. Tudo se confunde nessa manhã, o cheiro a algas, o sal forte que se forma nos baixios, a suave cal descolando das paredes aldeãs. Já nada disto existe em cada novo ano, mas um recomeço é sempre um novo edifício por construir, erguido com as mãos para ser sentido com os dedos.

2-01-2013